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O Incidente de Deslocamento de Competência com fundamento nas hipóteses de grave violação de direitos humanos.

André Luiz B. Canuto

advogado@andrecanuto.adv.br

               A Emenda Constitucional nº 45/2004 possui enorme relevância para os Direitos Humanos. Além do tratamento especial que conferiu aos tratados internacionais relacionados à matéria, trouxe uma novidade processual interessante, objeto de diversas provas de concurso público: o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC).

              Esse expediente processual tem por finalidade deslocar a competência das causas que envolvam graves violações de Direitos Humanos para a Justiça Federal, conforme disciplina do art. 109, §5º, da CF.

 “§5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.” (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

              Todas as questões judiciais observam uma série de regras de competência, que definem, entre outras coisas, perante que órgão do Poder Judiciário tramitará a ação. Sabemos que a Justiça Eleitoral, Militar e do Trabalho são consideradas “especializadas”, para as quais a CF previu um sistema judicial estruturado e específico. Paralelamente, a “Justiça Comum” se divide em estadual e federal. À Justiça Federal competem as demandas propostas que envolvam, em regra, as “causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes” (art. 109, I, da CF), desde que não sejam matérias de competência das “justiças especializadas”.

              A regra básica sobre a delimitação da competência da Justiça Estadual, por sua vez, é residual, vale dizer, o que não for de competência da Justiça Eleitoral, Militar, do Trabalho e Federal, será de competência do Poder Judiciário Estadual.

              As normas de Direitos Humanos podem estar presentes nas mais diversas matérias. Sempre que houver tutela de direitos relativos à dignidade humana, normas de Direitos Humanos deverão ser observadas. A Justiça Eleitoral, por exemplo, é responsável por resolver conflitos que envolvem a capacidade eleitoral ativa e passiva, o pluralismo político, entre outros. Todos esses direitos são humanos de primeira dimensão, conforme classificação doutrinária consagrada. Do mesmo modo, questões cíveis que envolvem reparações por violações aos direitos de personalidade são, também, matéria afetas aos Direitos Humanos. A Justiça do Trabalho, responsável por resolver os conflitos de trabalho entre empregadores e trabalhadores, envolvem cotidianamente os direitos sociais mínimos dos trabalhadores. Esses direitos, em última análise, são direitos humanos de segunda dimensão.

              Com os exemplos acima podemos concluir que os direitos protetivos à dignidade da pessoa permeiam todo o ordenamento jurídico e se fazem presentes nos mais diversos órgãos do Poder Judiciário. Justamente quando envolver ações tramitando em outros órgãos do Poder Judiciário e a questão tratada no processo envolver grave violação aos Direitos Humanos é que surge a possibilidade de aplicação do art. 109, §5º, da CF.

            De acordo com o dispositivo mencionado, verificada uma hipótese de grave violação aos direitos humanos, o Procurador-Geral da República (PGR), poderá suscitar perante o Superior Tribunal de Justiça incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, justamente para assegurar o cumprimento de obrigações firmadas pelo Brasil em tratados internacionais de Direitos Humanos.

Para fins de provas devemos nos atentar para:

  1. ) o IDC poderá ser suscitado em caso de grave violação de direitos humanos;

  2. ) o IDC tem por finalidade assegurar o cumprimento de obrigações firmadas em tratados internacionais de Direitos Humanos;

  3. ) o Procurador Geral da República será o suscitante; e

  4. ) o IDC será analisado no STJ.

 

              O incidente de deslocamento de competência é instituto criado com a Emenda Constitucional nº 45, que, adequando o funcionamento do Judiciário brasileiro ao sistema de proteção internacional aos direitos humanos, permite ao Procurador-Geral da República, nos casos de grave violação a tais direitos, suscitar perante o Superior Tribunal de Justiça, a competência da Justiça Federal.

 

De acordo com o Procurador da República Vladimir Aras:

 “Pode-se conceituar o IDC – Incidente de Deslocamento de Competência como um instrumento político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos, previstos em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro seja parte. Cuida-se de ferramenta processual criada para assegurar um dos fundamentos da República: a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF) e para preservar um dos princípios pelos quais se guia o País nas suas relações internacionais e obviamente também no plano interno: a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II, CF).”[1]

 

Ademais, sobre a natureza jurídica do instituto, prossegue o autor:

“Sendo também, como me parece, uma garantia individual, o IDC tem aplicação imediata, por força do artigo 5º, §1º, da Constituição Republicana. Essa sua natureza decorre da sua própria finalidade, qual seja, a efetiva prestação da jurisdição nos casos de crimes contra os direitos humanos, servindo primordialmente aos interesses da vítima e da sociedade, no ideal de segurança jurídica e de reparação, mas também prestando-se a resguardar a posição jurídica de autores de delitos, no que diz respeito à duração razoável do processo e ao respeito aos seus direitos fundamentais por parte dos Estados-membros e do Distrito Federal.”[2] 

              Assim, o incidente de deslocamento de competência tem natureza jurídica de garantia à efetividade da prestação jurisdicional e pode ser definido como um incidente processual penal para a modificação da competência nas causas relativas a direitos fundamentais. Ainda, com base na análise feita pelo autor supracitado, pode ser entendido como instrumento político destinado a resguardar a responsabilidade do Estado soberano perante a comunidade internacional, em função de tratados de proteção à pessoa humana firmados pela União.

              Desde a sua criação, em 2004, o IDC foi solicitado apenas cinco vezes e admitido em três. Em 2005, como Procurador-geral da República, Claudio Fonteles proveu o primeiro IDC para que o caso do assassinato de Dorothy Stang fosse julgado na esfera Federal. De acordo com ele, Dorothy foi “brutal e covardemente” assassinada e o fato foi, por completo, "subvertido em investigações encetadas no âmbito estadual, que passavam a apontar a vítima - diga-se senhora idosa e, exclusivamente, dedicada à assistência dos mais pobres - como figura de peso em agitações no campo, apresentando-a como pessoa perigosa." Na ocasião, a 3ª seção do STJ indeferiu o pedido, entendendo que as autoridades estaduais encontravam-se empenhadas na apuração dos fatos com objetivo de punir os responsáveis, "refletindo a intenção de o Estado Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos diretos humanos, que afasta necessidade deslocamento da competência originária pra Justiça Federal."

              Cinco anos mais tarde, em 2010, o STJ admitiu o segundo IDC suscitado na Corte. Este referente ao conhecido "Caso Manoel Mattos" e levado ao STJ pelo então procurador-Geral da República Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.

              Depois de sofrer diversas ameaças e vários atentados, o ex-vereador e advogado, Manoel Mattos foi executado em janeiro de 2009 na praia de Acaú, em Pitimbú, município do litoral sul da Paraíba. O homicídio foi motivado pela constante atuação de Mattos contra o crime organizado, especialmente contra grupos de extermínio que, de acordo com a decisão do STJ, agiam impunes há mais de uma década na divisa dos Estados da Paraíba e de Pernambuco, entre os municípios de Pedras de Fogo e Itambé. Na ocasião, a 3ª seção do STJ entendeu ser “notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas” ao caso, que foi deslocado para a JF do Estado.

              O IDC nº 3, suscitado pelo então procurador-Geral Roberto Gurgel em 2013, foi recentemente julgado parcialmente procedente pela 3ª seção do STJ. O Incidente pleiteia o deslocamento dos procedimentos administrativos ou judiciais de investigação, inquéritos policiais ou ações penais relacionados a violência policial e atuação de grupos de extermínio no Estado de GO desde 2000.

              O IDC nº 4 chegou ao STJ também em 2013, mas não foi suscitado pelo Procurador-Geral da República e, por este motivo, foi negado por decisão monocrática do ministro Rogerio Schietti Cruz. O incidente foi levado à corte por integrante do TCU/PE, alegando que atos administrativos praticados no âmbito do Tribunal culminaram com sua aposentadoria por invalidez permanente, motivada por laudo que teria constado quadro de "esquizofrenia paranoide" e de "psicopatia".

 

              Outro IDC admitido pelo STJ foi o 5, suscitado pelo atual procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, em maio do ano passado. O IDC trata do caso da morte do promotor de Justiça estadual Thiago Faria Soares. Há indícios de que o assassinato resultou de ação de grupos de extermínio que agem no interior do Estado de PE. De acordo com a decisão da 3ª turma da Corte, há também no caso notório conflito institucional que se instalou, inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos com a investigação e persecução penal dos ainda não identificados autores do crime.

 

              Finalmente, para que fique claro os requisitos do IDC, colacionamos a decisão do último julgamento:

             

INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO INSERIDO EM CONTEXTO DE GRUPOS DE EXTERMÍNIO. GRAVE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS. CONFIGURAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES DECORRENTES DE TRATADO INTERNACIONAL. ESTADO-MEMBRO. AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES DE APURAR VIOLAÇÕES E RESPONSABILIZAR O(S) CULPADO(S). EXCEPCIONALIDADE DEMONSTRADA. DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA QUE SE MOSTRA DEVIDO.

1. A Emenda Constitucional n. 45, de 31.12.2004, relativa à reforma do Poder Judiciário, inseriu no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de deslocamento da competência originária para a investigação, o processamento e o julgamento dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte.

2. A Terceira Seção deste Superior Tribunal explicitou que os requisitos do incidente de deslocamento de competência são três: a) grave violação de direitos humanos; b) necessidade de assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais; c) incapacidade – oriunda de inércia, omissão, ineficácia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais e/ou materiais etc. – de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal (IDC n. 1/PA, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado em 8.6.2005, DJ 10.10.2005).

3. A violação de direitos humanos que enseja o deslocamento de competência, além de grave, deve ser relacionada a obrigações decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.

4. Para o deslocamento da competência, deve haver demonstração inequívoca de que, no caso concreto, existe ameaça efetiva e real ao cumprimento de obrigações assumidas por meio de tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil, resultante de inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, proceder à devida persecução penal.

5. A confiabilidade das instituições públicas envolvidas na persecução penal – Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário -, constitucional e legalmente investidas de competência originária para atuar em casos como o presente, deve, como regra, prevalecer, ser apoiada e prestigiada.

6. O incidente de deslocamento de competência não pode ter o caráter de prima ratio, de primeira providência a ser tomada em relação a um fato (por mais grave que seja). Deve ser utilizado em situações excepcionalíssimas, em que efetivamente demonstrada a sua necessidade e a sua imprescindibilidade, ante provas que revelem descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições pessoais e/ou materiais das instituições – ou de uma ou outra delas – responsáveis por investigar, processar e punir os responsáveis pela grave violação a direito humano, em levar a cabo a responsabilização dos envolvidos na conduta criminosa, até para não se esvaziar a competência da Justiça Estadual e inviabilizar o funcionamento da Justiça Federal.

7. A ideia de excepcionalidade do incidente não pode, contudo, ser de de grandeza tal a ponto de criar requisitos por demais estritos que acabem por inviabilizar a própria utilização do instituto de deslocamento.

8. O caso dos autos aponta fatores relacionados à região onde ocorreu a morte do Promotor de Justiça estadual Thiago Faria Soares, com indicativos de que o assassinato provavelmente resultou da ação de grupos de extermínio que atuam no interior do Estado de Pernambuco (como tantos outros que ocorreram na região conhecida como “Triângulo da Pistolagem”, situada no agreste pernambucano), bem como ao certo e notório conflito institucional que se instalou, inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos com a investigação e a persecução penal dos ainda não identificados autores do crime noticiado.

9. A falta de entendimento operacional entre a Polícia Civil e o Ministério Público estadual ensejou um conjunto de falhas na investigação criminal que arrisca comprometer o resultado final da persecução penal, com possibilidade, inclusive, de gerar a impunidade dos mandantes e dos executores do citado crime de homicídio.

10. O pedido de deslocamento de competência encontra-se fundamentado em afronta a tratado internacional de proteção a direitos humanos. O direito à vida, previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), é a pedra basilar para o exercício dos demais direitos humanos. O julgamento justo, imparcial e em prazo razoável é, por seu turno, garantia fundamental do ser humano, previsto, entre outros, na referida Convenção, e dele é titular não somente o acusado em processo penal, mas também as vítimas do crime (e a sociedade em geral) objeto da persecução penal, dada a redação ampliativa dada ao inciso LXXVIII do artigo 5º da CF: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Ademais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem, reiteradamente, asseverado que a obrigação estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos deve ser empreendida pelos Estados de maneira séria e efetiva, dentro de um prazo razoável.

11. No caso vertente, encontram-se devidamente preenchidos todos os requisitos constitucionais que autorizam e justificam o pretendido deslocamento de competência, porquanto evidenciada a incontornável dificuldade do Estado de Pernambuco de reprimir e apurar crime praticado com grave violação de direitos humanos, em descumprimento a obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte.

12. Incidente de deslocamento de competência julgado procedente, para que seja determinada a imediata transferência do Inquérito Policial n. 07.019.0160.00158/2013-1.1 para a Polícia Federal, sob o acompanhamento e controle do Ministério Público Federal, e sob a jurisdição, no que depender de sua intervenção, da Justiça Federal, Seção Judiciária de Pernambuco. Ainda, determinação para que a tramitação do feito corra sob o regime de segredo de justiça, observada a Súmula Vinculante n. 14, do Supremo Tribunal Federal.

(STJ - IDC 5/PE, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/08/2014, DJe 01/09/2014)

              O aresto acima, além de explicitar um bom exemplo de grave violação dos direitos humanos, minudencia os requisitos do IDC, que foram explicitados pela primeira vez no IDC nº 1, quais sejam:

  1. grave violação de direitos humanos;

  2. necessidade de assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais; e

  3. incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer resposta efetiva.

              Dos requisitos acima, os dois primeiros constam expressamente do dispositivo constitucional (art. 109, §5º). O terceiro, por sua vez, denota a excepcionalidade para a utilização do expediente processual, que somente será possível se demonstrada a necessidade e a imprescindibilidade, ante a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer resposta efetiva à violação de direitos humanos perpetrada.

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[1] ARAS, Vladimir. Direitos Humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2005-mai-17/federalizacao_crimes_valida_ultimo> . Acesso em: 25 de fevereiro de 2013.

[2] ARAS, Vladimir. Direitos Humanos: federalização de crimes só é válida em último caso. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2005-mai-17/federalizacao_crimes_valida_ultimo> . Acesso em: 25 de fevereiro de 2013.

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