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O QUE É O "TRUST" UTILIZADO INDEVIDAMENTE POR EDUARDO CUNHA

André Luiz B. Canuto

advogado@andrecanuto.adv.br

 Trata-se de uma ferramenta que possibilita a transferência de bens para que sejam administrados por um terceiro – seja pessoa física ou jurídica – em favor de quem os transferiu. O trustee, que é quem irá gerir o recurso, passa a ser o proprietário legal dos ativos. Dependendo do tipo de contrato, esse montante pode retornar ao investidor ou a seus herdeiros. Também existe a possibilidade de aplicação do capital em outra finalidade previamente combinada.

“Entre pessoas físicas, o trust é utilizado para prover descendência. A pessoa pode deixar o patrimônio no trust para que ele seja posteriormente destinado aos filhos e netos mediante determinados eventos, como a entrada na faculdade, por exemplo”, explica Salomão Neto (in O Trust e o Direito Brasileiro). O especialista destaca que também é possível que os investidores transfiram recursos ao trust para que o dinheiro seja utilizado em projetos de caridade. Nesse caso, o capital não irá retornar ao proprietário anterior.

Para afastar qualquer uso dos trusts com fins de sonegação fiscal, por exemplo, a Itália introduziu, no artigo 74 a 76 da Legge 296 de 27/12/2006, severas medidas de controle sobre sua utilização em paraísos fiscais e de tributação sobre todas as situações jurídicas decorrentes da cessão dos recursos pelo Settlor ou da percepção pelo beneficiário dos direitos ou frutos decorrentes.

Consideramos que medida semelhante poderia ser empregada no Brasil, a prescrever um regime de transparência nas hipóteses de trusts em paraísos fiscais, para determinar a tributação transparente dos rendimentos do beneficiário, salvo prova em contrário que confirme a prevalência da substância sobre a forma.

Essa preocupação já se via na própria Convenção de Haia sobre a lei aplicável aos trusts e sobre o seu reconhecimento (Convention of 1 July 1985 on the Law Applicable to Trusts and on their Recognition - Entrou em vigor: 01/01/1992), ratificada por vários países, como Austrália, Canadá, China, França, Itália, Luxemburgo, Holanda, Suíça, Estados Unidos ou Inglaterra. Nesta, a única disposição que se refere à matéria tributária encontra-se no seu artigo 19, segundo o qual nada da convenção pode prejudicar a aplicação de normas tributárias pelas autoridades fiscais dos países, a saber: “nothing in the Convention shall prejudice the powers of States in fiscal matters”. Destarte, os trusts não se podem utilizar para qualquer finalidade de ocultação de bens ou de sonegação fiscal, aqui ou alhures.

A Convenção de Haia sobre trusts, em seu artigo 2o, a saber:

  1. a segregação da titularidade dos bens ou direitos, pela qual ao trustee (administrador ou gestor) é atribuída a propriedade legal e aos beneficiários se confere a propriedade econômica;

  2. a autonomia dos bens e direitos dados em trust em relação ao patrimônio geral do trustee, em vista da afetação desses bens e direito a determinados fins; e

  3. a atribuição ao trustee de uma obrigação fiduciária, qual seja, a de gerir os bens transferidos pelo settlor, segundo as condições impostas no instrumento de criação do trust ou pela lei.

O trust permite dividir a propriedade de um bem (ou cindir a titularidade de um mesmo direito) entre dois sujeitos, dos quais um, o trustee, é legitimado a exercitar grande parte das faculdades comumente inerentes ao direito de propriedade, e o outro, o beneficiary, o sujeito que gozará das vantagens do exercício de poder do trustee sobre o bem de sua propriedade (que pode ser o próprio settlor). 

Temos, pois, uma estrutura triádica de relações jurídicas de natureza fiduciária, nas quais um sujeito (settlor) atribui a outro sujeito (trustee — pessoa física ou jurídica) a legitimação (legal title) para cumprir determinados atos sobre específicos bens ou direitos (que constituem a trust property), com a obrigação de mantê-los e administrá-los de acordo com as determinações contidas no contrato de trust firmado por ambos, no interesse de um ou mais beneficiários titulares. Como se pode ver, à propriedade jurídica (que remanesce com o trustee) contrapõe-se a propriedade econômica dos beneficiários (com base no equity law).

Para cumprimento das obrigações do trustee (administrador), este deve adimplir as cláusulas do contrato em favor do beneficiário (beneficial ownership). E como o trustee geralmente é uma pessoa não residente, este não tem dever de declaração, no Brasil, dos investimentos sob sua propriedade jurídica.

Dúvidas, porém, não pode haver sobre o dever de declaração, no Brasil, da transferência de patrimônio para criação de trust no exterior (i), estejam os recursos ou ativos dentro ou fora do território nacional; ou sobre os rendimentos percebidos pelo beneficiário (ii), quando transmitidos pelo trust.

Quanto ao recebimento dos recursos ou dos seus frutos pelo beneficiário, impõe-se o dever de declaração junto ao Banco Central, na forma da Medida Provisória 2224/2001, e à Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), sobre qualquer recebimento, sob pena de ofensa ao disposto no artigo 1º da Lei 8137/91 (crime contra a ordem tributária ou sonegação fiscal) e artigo 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86 (evasão de divisas, caso receba ou mantenha depósitos no exterior).

Nos termos do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América para Melhoria da Observância Tributária Internacional e Implementação do FATCA, firmado em Brasília, em 23 de setembro de 2014, e promulgado pelo Decreto 8.506/15, cf. Anexo 1, II, F: “Contas Individuais Pré-existentes que Foram Documentadas para Determinados Outros Fins. A Instituição Financeira Brasileira Informante que obteve previamente documentação junto ao Titular da Conta a fim de determinar que o Titular da Conta não é cidadão dos EUA nem residente dos EUA para fins fiscais de modo a cumprir suas obrigações nos termos de intermediário qualificado, sociedade estrangeira retentora ou contrato de fideicomisso ("Trust") estrangeiro retentor celebrado com o IRS, ou para cumprir suas obrigações no âmbito do capítulo 61 do Título 26 do Código dos Estados Unidos, não é obrigada a adotar os procedimentos especificados no subparágrafo B(1) desta seção em relação às Contas de Baixo Valor ou nos subparágrafos D(1) a D(3) desta seção em relação às Contas de Alto Valor.”

Destarte, a obrigação acessória de declaração do patrimônio percebido deverá ser cumprida pelo beneficiário, afora o recolhimento dos tributos devidos. Nesse caso, afora o IOF sobre o câmbio, no caso de pessoa física, incidirá o IRPF sobre os valores percebidos pelo beneficiário, à alíquota de 27,5% (carnê leão), com lançamento na declaração de ajuste anual e fornecimento de declaração ao Bacen, por força da Medida Provisória 2224/2001. Caso não tenha sido prestada a declaração à SRFB, caberá ao contribuinte apresentar as declarações retificadoras, com as repercussões moratórias de estilo (artigo 138 do CTN, na condição de “denúncia espontânea”).

Portanto, quando o beneficiário receber distribuições do trust a qualquer título, pela natureza de acréscimo patrimonial, não é de “doação” que se trata, mas de típico caso de rendimento tributável. O trust não “doa” patrimônio ao beneficiário. Logo, o beneficiário tem o dever de declarar e pagar o IRPF na proporção do rendimento auferido (regime de Pass-Through Taxation), quando deverá identificar como “fonte” o trust no exterior.

Neste novo cenário de transparência, não mais se pode tolerar o uso de trusts como meio para qualquer forma de sonegação fiscal. Daí a urgência de aprovação pelo Congresso Nacional da Convenção Multilateral de Assistência Mútua em Matéria Tributária, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ainda em tramitação. Com sua aprovação, a partir de 2016, os controles sobre os usos indevidos de trusts, fundações e sociedades no exterior serão cada vez mais intensos, a exigir adaptações do Direito Tributário nacional para separar as formas lícitas de trusts daquelas dedicadas à simples ocultação patrimonial, o que é uma distorção inconcebível do instituto secular do common law.

 

DE FORMA OBJETIVA PARA QUE SERVIU O TRUST NO CASO DE EDUARDO CUNHA

Aplicar em um trust é colocar o dinheiro em um cofre que não lhe pertence e nem fica em sua casa. Enquanto o dinheiro está lá, ele não é seu, mas você sabe exatamente onde o cofre fica, é o dono das chaves e pode abri-lo quando quiser.

O dinheiro aplicado num trust não está sujeito a tributação de herança quando o instituidor morre, por exemplo. Pois o proprietário legal não é ele. No momento da criação do investimento, o instituidor pode definir como quiser a divisão de sua fortuna após sua morte, ainda que decida que essa divisão será feita anos depois de morrer.

Durante esse período, o trustee administrará os recursos em troca de uma taxa a ser descontada do valor total periodicamente. Em vida, o instituidor pode receber uma mesada ou definir que despesas pessoais sejam pagas pelo trust. E pode decidir liquidar (revogar, no jargão financeiro) o trust e receber o dinheiro de volta a qualquer momento.

Um trust pode também ser instituído para gerir recursos de pessoas incapacitadas ou jovens demais que tenham recebido grandes fortunas. Pode ainda ser uma forma de proteger recursos, pois em caso de falência ou condenação legal do instituidor, por exemplo, bens incluídos no trust ficam protegidos de confisco, já que não pertencem oficialmente ao condenado. Finalmente, infelizmente tenho observado que os trusts são uma opção para aqueles que desejam esconder a posse de bens ilícitos e/ou não declarados.

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